quinta-feira, 15 de maio de 2008

Acordo Ortográfico II

Eu continuo sem grande opinião sobre o desacordo ortográfico. Quedo-me na expectativa de ver o que acontece, naquela posição confortável do talvez sim, talvez não (eclético!).

Como reformista estou sempre a favor da evolução, na vida como na linguagem, por isso parece-me bem que a língua evolua e se adapte.

Como conservador (e é tão confortável ser conservador!) sabe-me que as coisas permaneçam como estão. Vou ter que reaprender a escrever. Vou passar a dar erros (ainda mais erros!) por causa da preguiça de apreender. Vou ter que reformar a minha biblioteca, ou ficar com centenas livros com linguagem arcaica. Novos dicionários, novas enciclopédias, novos códigos …
Socooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooorro!

Estou quase a decidir-me no sentido de assinar a petição do Graça Moura (que parece que já ultrapassou os 200 mil aderentes (MANIFESTO EM DEFESA DA LÍNGUA PORTUGUESA)!

Esta coisa de passarmos a escrever como os brasileiros comporta um outro inconveniente. Os brasileiros passam a escrever como nós e isso leva a que literatura brasileira perca o encanto da diferença. Gosto de ler livros de autores brasileiros. Quando fui ao Brasil aproveitei para comprar alguns livros e tenho andado a ler os vários que adquiri de Luís Fernando Veríssimo (vejam AQUI como ele tem publicado poucos!).

Mais cronista que escritor, Veríssimo é um autor talentoso, imaginativo e de humor refinado (e também é músico, tocando sax alto nos Jazz 6 – querem ouvir o seu último álbum?, vão AQUI).

Quem compra jornais (mesmo portugueses) e percorre a net em busca de crónicas tem, ao longo dos anos, tido a oportunidade de ler muitos dos textos de Luís Fernando Veríssimo que por aí andam.

Recentemente fui premiado com um texto deste cronista num mail proveniente de amigos (desconhecidos, mas amigos!) brasileiros. Gostei e partilho aqui, como prova de que é bom ler português/brasileiro e que, calhande (em português/algarvio), não há que mexer em nada, pois tudo está bem na sua diferença.

Não é assim, de fato? Ou será melhor continuar assim de facto!

Pois cá vai a prometida crónica do LFV (que também pode ser lida no SITE do autor):

"Encontram-se na área de serviço. Cada um com seu pacote de lixo. É a primeira vez que se falam.
- Bom dia...
- Bom dia.
- A senhora é do 610.
- E o senhor do 612.
- É.
- Eu ainda não lhe conhecia pessoalmente...
- Pois é...
- Desculpe a minha indiscrição, mas tenho visto o seu lixo...
- O meu quê?
- O seu lixo.
- Ah...
- Reparei que nunca é muito. Sua família deve ser pequena...
- Na verdade sou só eu.
- Mmmm. Notei também que o senhor usa muita comida em lata.
- É que eu tenho que fazer minha própria comida. E como não sei cozinhar...
- Entendo.
- A senhora também...
- Me chame de você.
- Você também perdoe a minha indiscrição, mas tenho visto alguns restos decomida em seu lixo. Champignons, coisas assim...
- É que eu gosto muito de cozinhar. Fazer pratos diferentes. Mas como morosozinha, às vezes sobra...
- A senhora... Você não tem família?
- Tenho, mas não aqui.
- No Espírito Santo.
- Como é que você sabe?
- Vejo uns envelopes no seu lixo. Do Espírito Santo.
- É. Mamãe escreve todas as semanas.
- Ela é professora?
- Isso é incrível! Como foi que você adivinhou?
- Pela letra no envelope. Achei que era letra de professora.
- O senhor não recebe muitas cartas. A julgar pelo seu lixo.
- Pois é...
- No outro dia tinha um envelope de telegrama amassado.
- É.
- Más notícias?
- Meu pai. Morreu.
- Sinto muito.
- Ele já estava bem velhinho. Lá no Sul. Há tempos não nos víamos.
- Foi por isso que você recomeçou a fumar?
- Como é que você sabe?
- De um dia para o outro começaram a aparecer carteiras de cigarro amassadasno seu lixo.
- É verdade. Mas consegui parar outra vez.
- Eu, graças a Deus, nunca fumei.
- Eu sei. Mas tenho visto uns vidrinhos de comprimido no seu lixo...
- Tranqüilizantes. Foi uma fase. Já passou.
- Você brigou com o namorado, certo?
- Isso você também descobriu no lixo?
- Primeiro o buquê de flores, com o cartãozinho, jogado fora. Depois, muitolenço de papel.
- E, chorei bastante. Mas já passou.
- Mas hoje ainda tem uns lencinhos...
- É que eu estou com um pouco de coriza.
- Ah.
- Vejo muita revista de palavras cruzadas no seu lixo.
- É. Sim. Bem. Eu fico muito em casa. Não saio muito. Sabe como é.
- Namorada?
- Não.
- Mas há uns dias tinha uma fotografia de mulher no seu lixo. Até bonitinha.
- Eu estava limpando umas gavetas. Coisa antiga.
- Você não rasgou a fotografia. Isso significa que, no fundo, você quer queela volte.
- Você já está analisando o meu lixo!
- Não posso negar que o seu lixo me interessou.
- Engraçado. Quando examinei o seu lixo, decidi que gostaria de conhecê-la.Acho que foi a poesia.
- Não! Você viu meus poemas?
- Vi e gostei muito.
- Mas são muito ruins!
- Se você achasse eles ruins mesmo, teria rasgado. Eles só estavam dobrados.
- Se eu soubesse que você ia ler...
- Só não fiquei com eles porque, afinal, estaria roubando. Se bem que, nãosei: o lixo da pessoa ainda é propriedade dela?
- Acho que não. Lixo é domínio público.
- Você tem razão. Através do lixo, o particular se torna público. O quesobra da nossa vida privada se integra com a sobra dos outros. O lixo écomunitário. É a nossa parte mais social. Será isso?
- Bom, aí você já está indo fundo demais no lixo. Acho que...
- Ontem, no seu lixo..
- O quê?
- Me enganei, ou eram cascas de camarão?
- Acertou. Comprei uns camarões graúdos e descasquei.
- Eu adoro camarão.
- Descasquei, mas ainda não comi. Quem sabe a gente pode...
- Jantar juntos?
- É.
- Não quero dar trabalho.
- Trabalho nenhum.
- Vai sujar a sua cozinha.
- Nada. Num instante se limpa tudo e põe os restos fora.
- No seu lixo ou no meu?"



Gostaram.
Não têm o que fazer?
Querem mais?
Pois o LFV disponibiliza alguns dos seus textos favoritos AQUI

2 comentários:

Anónimo disse...

Gostei!

Anónimo disse...

Gostei muito