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Gostava de te convidar para minha casa,
como aos amigos nos velhos tempos.
Abria uma garrafa de vinho e contava-te de quando era
pequeno
e tu contavas-me como te corre o emprego, o amor.
Vemo-nos todos os dias e falamos tão pouco.
Estendo-te a mão e às vezes dás-me uma moeda,
mas falamos tão pouco.
Gostava de te convidar para minha casa
mas não tenho casa, vai ter de ficar para a próxima.
Filipa Leal, “Nocturno para Varsóvia” in Vem à Quinta-feira
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Magoa-me a saudade
do sobressalto dos corpos
ferindo-se de ternura
dói-me a distante lembrança
do teu vestido
caindo aos nossos pés
Magoa-me a saudade
do tempo em que te habitava
como o sal ocupa o mar
como a luz recolhendo-se
nas pupilas desatentas
Seja eu de novo tua sombra, teu desejo
tua noite sem remédio
tua virtude, tua carência
eu
que longe de ti sou fraco
eu
que já fui água, seiva vegetal
sou agora gota trémula, raiz exposta
Traz
de novo, meu amor,
a transparência da água
dá ocupação à minha ternura vadia
mergulha os teus dedos
no feitiço do meu peito
e espanta na gruta funda de mim
os animais que atormentam o meu sono
… poema “saudade”, de Mia Couto…
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(…)
We will not be turned around
or interrupted by intimidation,
because we know our inaction and inertia
will be the inheritance of the next generation.
Our blunders become their burdens.
But one thing is certain,
If we merge mercy with might,
and might with right,
then love becomes our legacy,
and change our children's birthright.
(…)
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(…)
Não seremos demovidos
Nem interrompidos pela intimidação
Porque sabemos que nossa inação e inércia
Serão herança da próxima geração
Os nossos erros tornam-se seus fardos.
Mas uma coisa é certa:
Se fundirmos compaixão com o poder, e o poder com o direito,
Então, o amor será o nosso legado
E a mudança, o direito inato das nossas crianças.
(…)
Amanda Gorman, “The Hill We Climb”/“A Colina Que Subimos”
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São meus filhos. Gerei-os no meu ventre.
Via-os chegar, às tardes, comovidos,
nupciais e trementes
do enlace da Vida com os sentidos.
Estiveram no meu colo, sonolentos.
Contei-lhes muitas lendas e poemas.
Às vezes, perguntavam por algemas.
Respondia-lhes: mar, astros e ventos.
Alguns, os mais ousados, os mais loucos,
desejavam a luta, o caos, a guerra.
Outros sonhavam e acordavam roucos
de gritar contra os muros que há na Terra.
São meus filhos. Gerei-os no meu ventre.
Nove meses de esperança, lua a lua.
Grandes barcos os levam, lentamente...
... poema "Guerra", de Natércia Freire, in "Liberta em Pedra"
E tropeçavam todos nalgum vulto,
quantos iam, febris, para morrer:
era o passado, o seu passado — um vulto
de esfinge ou de mulher.
Caíam como heróis os que não o eram,
pesados de infortúnio e solidão.
(Arma secreta em cada coração:
a tortura de tudo o que perderam.)
Inimigos não tinham a não ser
aquela nostalgia que era deles.
Mas lutavam!, sonâmbulos, imbeles,
só na esp'rança de ver, de ver e ter
de novo aquele vulto
— imponderável e oculto —
de esfinge, ou de mulher.
David Mourão-Ferreira, in "Tempestade de Verão"
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