quarta-feira, 27 de abril de 2022

… dois e dois …

 















Como dois e dois são quatro

sei que a vida vale a pena

embora o pão seja caro

e a liberdade pequena

 

Como teus olhos são claros

e a tua pele, morena

como é azul o oceano

e a lagoa, serena

 

Como um tempo de alegria

por trás do terror me acena

e a noite carrega o dia

no seu colo de açucena

 

– sei que dois e dois são quatro

sei que a vida vale a pena

mesmo que o pão seja caro

e a liberdade pequena

 

«Dois e dois: Quatro», de Ferreira Gullar (pseudônimo de José Ribamar Ferreira), in "Autobiografia poética e outros textos"




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… para não esquecer …

 


















Porque nem só de poesia vive o homem, agora que atingimos 48 anos de democracia, depois de outros tantos de ditadura, transcrevo o texto de Paulo Marques a que o autor chamou “Só para não esquecer”:

Antes de abril de 1974, durante a longa noite do fascismo, Portugal era um país triste, pobre, atrasado e analfabeto, vergado sob o peso da repressão, em guerra em três colónias – um conflito sem sentido e sem glória, que se arrastou por treze penosos anos.

Nesse tempo, os mais audazes partiam rumo à emigração e os que ficavam tinham de se sujeitar às regras dum país pequenino e mesquinho, conservador e moralista, em que o lápis azul da censura “selecionava” o que os portugueses podiam ou não saber, isto é, ler, escrever, ver e ouvir. Uma moral castradora que cortava o beijo do filme Casablanca, proibia concertos dos Beatles e beber Coca-Cola, punia com multa um beijo na boca em público...

As palavras de ordem eram «é proibido», «não se faz», «é pecado», «parece mal».

Era necessária uma licença do Estado para usar um isqueiro ou ser proprietário de uma bicicleta; Estavam proibidos os «ajuntamentos de mais de três pessoas» na via pública; Também o divórcio era proibido (para os católicos), pelo que, todas as crianças nascidas de uma nova relação posterior ao casamento eram consideradas ilegítimas; Parecia mal uma mulher entrar na igreja de cabeça descoberta, usar calças, mostrar o umbigo, traçar a perna ou fumar, tal como estava proibida de ir de minissaia para o liceu, usar biquíni na praia, exercer o direito de voto (que lhe foi impossibilitado até final da década de 60), ausentar-se para o estrangeiro sem o consentimento do marido, aceder a certas profissões (como as da carreira diplomática, magistratura, militar e polícia) ou sacudir o pano do pó à janela; Uma enfermeira ou hospedeira do ar não podiam casar e uma professora para o fazer teria de pedir autorização superior, sendo o pretendente obrigado a apresentar dois atestados: um de bom comportamento moral e cívico e outro em como auferia rendimento superior ao da futura esposa, fazendo justificação de possuir meios suficientes para a sustentar; Entre muitas outras interdições, era proibido conduzir um táxi ou entregar correio sem boné, guiar em tronco nu, pedir esmola, andar descalço na rua, jogar às cartas nos comboios ou frequentar casinos, no caso dos funcionários públicos (encarados, à pequena escala, como representantes do Estado)...

Possuíamos um Estado regulador até ao mais ínfimo pormenor, com um aparelho repressivo e controlador assente numa legião de pides e de bufos. Quando, a 4 de agosto de 1974, a «Comissão de Extinção da PIDE e da Legião Portuguesa» dá a conhecer o poder da máquina repressiva, da mais velha e conservadora ditadura europeia, o país fica a saber que a polícia política possuía qualquer coisa como 2162 funcionários, cerca de 20 000 informadores, 80 000 legionários com 600 informadores e 200 elementos da Força Automóvel de Choque.

Escreveu António de Almeida Santos (1926 – 2016): «Um pide em cada mesa de café; um censor em cada jornal; um pé-de-cabra em cada porta; um preso político em cada família; um travão em cada vontade; um susto em cada consciência».

Só para não esquecer.




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segunda-feira, 25 de abril de 2022

... a cor da liberdade ...

 


Qual a cor da liberdade?

É verde, verde e vermelha.

 

Quase, quase cinquenta anos

reinaram neste país,

e conta de tantos danos,

de tantos crimes e enganos,

chegava até à raiz.

 

Qual a cor da liberdade?

É verde, verde e vermelha.

 

Tantos morreram sem ver

o dia do despertar!

Tantos sem poder saber

com que letras escrever,

com que palavras gritar!

 

Qual a cor da liberdade?

É verde, verde e vermelha.

 

Essa paz de cemitério

toda prisão ou censura.

e o poder feito galdério,

sem limite e sem cautério,

todo embófia e sinecura.

 

Qual a cor da liberdade?

É verde, verde e vermelha.

 

Esses ricos sem vergonha,

esses pobres sem futuro,

essa emigração medonha,

e a tristeza uma peçonha

envenenando o ar puro.

 

Qual a cor da liberdade?

É verde, verde e vermelha.

 

Essas guerra de além-mar

gastando as armas e a gente,

esse morrer e matar

sem sinal de se acabar

por política demente.

 

Qual a cor da liberdade?

É verde, verde e vermelha.

 

Esse perder-se no mundo

o nome de Portugal,

essa amargura sem fundo,

só miséria sem segundo,

só desespero fatal.

 

Qual a cor da liberdade?

É verde, verde e vermelha.

 

Quase, quase cinquenta anos

durou esta eternidade,

numa sombra de gusanos

e em negócios de ciganos,

entre mentira e maldade.

 

Qual a cor da liberdade?

É verde, verde e vermelha.

 

Saem tanques para a rua,

sai o povo logo atrás:

estala enfim, altiva e nua,

com força que não recua,

a verdade mais veraz.

 

Qual a cor da liberdade?

É verde, verde e vermelha.

 

JORGE DE SENA, 1979, in “40 Anos de Servidão”

Cantiga de Abril - Às Forças Armadas e ao povo de Portugal

«Não hei-de morrer sem saber qual a cor da liberdade» 










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domingo, 24 de abril de 2022

... bate coração ...

 



como o sol

como a noite

 

como a vontade de comer

e o sono

 

como as preocupações

e o amor

 

e porque saio à rua

e trabalho

diariamente

 

Aos domingos

aos domingos o golo no estádio

chega até minha casa

e até ao mar

 

O próprio sol

é uma imagem de couro no espaço

 

a chuva

é uma imagem de redes batidas

 

Ah Que fazer

senão esperar pela semana

 

dormindo

 

O mesmo pensamento

a mesma ira

 

Para que serve a mão

Perde o sentido o próprio sofrimento

 

o coração

a lira

 

Desde quando amor

este segredo

e me vestir sem luz

sabendo que não dormes

 

atento a um ruído

mais claro

 

a um sorriso

e a uma lágrima

parada


 

Bate coração

no peito que te guarda

 

lâmpada

suspensa

 

fruto com cadência

 

estrela

em rotação pelos telhados

 

Bate coração

 

até as sombras se alongarem 

pelos braços

  

António Reis, Poemas quotidianos



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sexta-feira, 22 de abril de 2022

... são tristes os meus dias com pedras ...

 















São tristes os meus dias com pedras

em lugar de mãos

ou a cabeça funda na brancura

de través do travesseiro

e o corpo depresso em moles guindastes.

São dias de chorar por menos

ou teimar queixoso com um crânio polido,

batuque convexo

no muro demorado.

 

Ficar a ouvir o sangue,

o som tubular do sangue. Ao vale seco

da clavícula atrair a água, o sangue

e sorver a sopa intestina

ou se o líquido escapa à boca

tantálica, calar com argila

o que me pede água.

 

Ficar a palpar os buracos

da ausência, as ligas

da ausência, as ribanceiras

a que caem os pensamentos, a cor

dióspiro que banha a enfermidade

e em seguida tomar o pulso

evadido, travar o touro, o soco da dor,

o infinito infinitivo presente.

 

Uma amálgama de alma

migra no fôlego de modorrento

pregão de dor, o condor

passa e anda andino e é uma

traça asfixiante: faço um céu rarefeito,

a dispneia é um felino

que arranha céus

e a boca rebuliço espúmeo

expele o sabor da morte

e o que mais consiga cuspir

por entre ovéns e enxárcias

e traves quebradas.

 

É uma desilusão com as coisas,

uma desilusão funda com as coisas,

com o vazio meio-cheio das coisas.

Meu fôlego um fólio cheio

de silêncio, uma catástrofe natural

 

um vulcão: no meu pulmão pôr lava

e no trovão treva.


                                                                       ... de Daniel Jonas 


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segunda-feira, 18 de abril de 2022

... era isto o que te queria dizer ...

 


Está na hora de ouvires o teu pai

Puxa para ti essa cadeira

Cada qual é que escolhe aonde vai

Hora-a-hora e durante a vida inteira

 

Podes ter uma luta que é só tua

Ou então ir e vir com as marés

Se perderes a direção da Lua

Olha a sombra que tens colada aos pés

 

Estou cansado. Aceita o testemunho

Não tenho o teu caminho pra escrever

Tens que ser tu, com o teu próprio punho

Era isso o que te queria dizer

 

Sou uma metade do que era

Com mais outro tanto de cidade

Vou-me embora que o coração não espera

À procura da mais velha metade

 

Está na hora de ouvires o teu pai

Puxa para ti essa cadeira

Cada qual é que escolhe aonde vai

Hora-a-hora e durante a vida inteira








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sábado, 16 de abril de 2022

… saudade, saudade …



 

I’ve tried to write a million other songs but

Somehow I can’t move on, oh you’re gone

Takes time, alright & I know it’s no one’s fault but

Somehow I can’t move on, oh you’re gone

 

Saudade, saudade

Nothing more that I can say says it in a better way

Saudade, saudade

Nothing more that I can say says it in a better way

 

Tem tanto que trago comigo, foi sempre o meu porto de abrigo

E agora nada faz sentido, perdi o meu melhor amigo

E se não for demais, peço por sinais, resta uma só palavra

Peço por sinais, resta uma só palavra

 

Saudade, saudade

Nothing more that I can say says it in a better way

Saudade, saudade

Nothing more that I can say says it in a better way

Nothing more that I can say says it in a better way

 

I’ve tried, alright, but it’s killing me inside

Thought you’d be by my side always



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domingo, 10 de abril de 2022

... caíste num buraco ... tu aprendes ...

 



... tu vives, aprendes

tu amas, aprendes

tu choras, aprendes

tu perdes, aprendes

tu sangras, aprendes

tu gritas, aprendes

tu afliges-te, aprendes

tu sufocas, aprendes

tu ris, aprendes

tu escolhes, aprendes

tu rezas, aprendes

tu perguntas, aprendes

tu vives, aprendes ...

 

 

You Learn, de Alanis Morissette

 


 

I recommend getting your heart trampled on to anyone

I recommend walking around naked in your living room

Swallow it down (what a jagged little pill)

It feels so good (swimming in your stomach)

Wait until the dust settles

 

You live you learn

You love you learn

You cry you learn

You lose you learn

You bleed you learn

You scream you learn

 

I recommend biting off more than you can chew to anyone

I certainly do

I recommend sticking your foot in your mouth at any time

Feel free

Throw it down (the caution blocks you from the wind)

Hold it up (to the rays)

You wait and see when the smoke clears

 

Wear it out (the way a three-year-old would do)

Melt it down (you're gonna have to eventually anyway)

The fire trucks are coming up around the bend

 

You grieve you learn

You choke you learn

You laugh you learn

You choose you learn

You pray you learn

You ask you learn

You live you learn



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