Porque nem só de poesia vive o homem, agora que atingimos 48
anos de democracia, depois de outros tantos de ditadura, transcrevo o texto de
Paulo Marques a que o autor chamou “Só para não esquecer”:
Antes de abril de 1974, durante a longa noite do fascismo,
Portugal era um país triste, pobre, atrasado e analfabeto, vergado sob o peso
da repressão, em guerra em três colónias – um conflito sem sentido e sem
glória, que se arrastou por treze penosos anos.
Nesse tempo, os mais audazes partiam rumo à emigração e os
que ficavam tinham de se sujeitar às regras dum país pequenino e mesquinho,
conservador e moralista, em que o lápis azul da censura “selecionava” o que os
portugueses podiam ou não saber, isto é, ler, escrever, ver e ouvir. Uma moral
castradora que cortava o beijo do filme Casablanca, proibia concertos dos
Beatles e beber Coca-Cola, punia com multa um beijo na boca em público...
As palavras de ordem eram «é proibido», «não se faz», «é
pecado», «parece mal».
Era necessária uma licença do Estado para usar um isqueiro
ou ser proprietário de uma bicicleta; Estavam proibidos os «ajuntamentos de
mais de três pessoas» na via pública; Também o divórcio era proibido (para os
católicos), pelo que, todas as crianças nascidas de uma nova relação posterior
ao casamento eram consideradas ilegítimas; Parecia mal uma mulher entrar na
igreja de cabeça descoberta, usar calças, mostrar o umbigo, traçar a perna ou
fumar, tal como estava proibida de ir de minissaia para o liceu, usar biquíni
na praia, exercer o direito de voto (que lhe foi impossibilitado até final da
década de 60), ausentar-se para o estrangeiro sem o consentimento do marido,
aceder a certas profissões (como as da carreira diplomática, magistratura, militar
e polícia) ou sacudir o pano do pó à janela; Uma enfermeira ou hospedeira do ar
não podiam casar e uma professora para o fazer teria de pedir autorização
superior, sendo o pretendente obrigado a apresentar dois atestados: um de bom
comportamento moral e cívico e outro em como auferia rendimento superior ao da
futura esposa, fazendo justificação de possuir meios suficientes para a
sustentar; Entre muitas outras interdições, era proibido conduzir um táxi ou
entregar correio sem boné, guiar em tronco nu, pedir esmola, andar descalço na
rua, jogar às cartas nos comboios ou frequentar casinos, no caso dos
funcionários públicos (encarados, à pequena escala, como representantes do
Estado)...
Possuíamos um Estado regulador até ao mais ínfimo pormenor,
com um aparelho repressivo e controlador assente numa legião de pides e de
bufos. Quando, a 4 de agosto de 1974, a «Comissão de Extinção da PIDE e da
Legião Portuguesa» dá a conhecer o poder da máquina repressiva, da mais velha e
conservadora ditadura europeia, o país fica a saber que a polícia política
possuía qualquer coisa como 2162 funcionários, cerca de 20 000 informadores, 80
000 legionários com 600 informadores e 200 elementos da Força Automóvel de
Choque.
Escreveu António de Almeida Santos (1926 – 2016): «Um pide
em cada mesa de café; um censor em cada jornal; um pé-de-cabra em cada porta;
um preso político em cada família; um travão em cada vontade; um susto em cada
consciência».
Só para não esquecer.
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