terça-feira, 19 de julho de 2016

Pastores de gaivotas


Éramos para ser muito felizes numa daquelas casas de madeira pintadas de branco, com um terraço voltado para o mar, a terminar nos limites da areia da praia.

Dentro de casa ia ser tudo branco à exceção das capas dos livros que me lerias nas manhãs em que nos acordassem os uivos do vento norte. Então ficaria deitada com a cabeça no teu colo e os sentidos alugados a um poema de Wallace ou, havendo sol, a um verso de um qualquer árabe do século XII que por mero acaso tivéssemos desenterrado na véspera. 


Éramos para almoçar em silêncio, na varanda, lado a lado e com os olhos presos no mar, um peixe pescado e assado por ti. Estaria vento mas não nos perturbaríamos com os objetos a fugirem da mesa e a dançarem numa espiral em nosso redor. Nem uma onda morreria antes que a guardássemos na retina.

Éramos para dançar ao por-do-sol na praia vazia perante uma plateia de gaivotas alinhadas em esquadria e à espera do crepúsculo. 


À noite, centenas de velas iluminariam a banheira vintage, branca, onde me lavarias os cabelos ao som do jazz da Billie Holiday.

E haveria, por fim, de adormecer como acordei, com a tua voz, por entre os uivos do vento norte, a alimentar-me a alma com a metafísica esdrúxula de uma criatura ainda mais perturbada do que nós dois. 

























Éramos para ser pastores de gaivotas.

Mas depois pensámos melhor e achámos que era mais fácil continuarmos a ser o que não somos.



Texto de "Cuca, a Pirata", em “Stars & Mythical Creatures” (AQUI)


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