quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

Sem venda nos olhos ...



Dizem que o reino anda mal governado, que nele está de menos a justiça, e não reparam que ela está como deve estar, com sua venda nos olhos, sua balança e sua espada, que mais queríamos nós, era o que faltava, sermos os tecelões da faixa, os aferidores dos pesos e os alfagemes do cutelo, constantemente remendando os buracos, restituindo as quebras, amolando os fios, e enfim perguntando ao justiçado se vai contente com a justiça que se lhe faz, ganhado ou perdido o pleito. Dos julgamentos do santo ofício não se fala aqui, que esse tem bem aberto os olhos, em vez da balança um ramo de oliveira, e uma espada afiada onde a outra é romba e com bocas. Há quem julgue que o raminho é da paz, quando está muito patente que se trata do primeiro graveto da futura pilha de lenha, ou te corto, ou te queimo, por isso é havendo que faltar à lei, mais vale apunhalar a mulher, por suspeita de infidelidade, que não honrar os fiéis defuntos, a questão é ter padrinhos que desculpem o homicídio e mil cruzados para pôr na balança, nem é para outra coisa que a justiça a leva na mão. Castiguem-se lá os negros e os vilões para que não se perca o valor do exemplo, mas honre-se a gente de bem e de bens, não lhe exigindo que pague as dívidas contraídas, que renuncie à vingança, que emende o ódio, e, correndo pleitos, por não se poderem evitar de todo, venham a rabulice, a trapaça, a apelação, a praxe, os ambages, para que vença tarde quem por justiça justa deveria vencer cedo, para quem tarde perca quem deveria perder logo. É que, entretanto, vão-se mungindo as tetas do bom leite que é o dinheiro, requeijão precioso, supremo queijo, manjar de meirinho e solicitador, de advogado e inquiridor, de testemunha e julgador, se falta algum é porque o esqueceu o padre António Vieira e agora não lembra.



José Saramago, in Memorial do Convento



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sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

O amor em visita


Dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra
e seu arbusto de sangue. Com ela
encantarei a noite.
Dai-me uma folha viva de erva, uma mulher.
Seus ombros beijarei, a pedra pequena
do sorriso de um momento.
Mulher quase incriada, mas com a gravidade
de dois seios, com o peso lúbrico e triste
da boca. Seus ombros beijarei.

Cantar? Longamente cantar.
Uma mulher com quem beber e morrer.
Quando fora se abrir o instinto da noite e uma ave
o atravessar trespassada por um grito marítimo
e o pão for invadido pelas ondas -
seu corpo arderá mansamente sob os meus olhos palpitantes.
Ele - imagem inacessível e casta de um certo pensamento
de alegria e de impudor.
Seu corpo arderá para mim
sobre um lençol mordido por flores com água.

Em cada mulher existe uma morte silenciosa.
E enquanto o dorso imagina, sob nossos dedos,
os bordões da melodia,
a morte sobe pelos dedos,navega o sangue,
desfaz-se em embriaguez dentro do coração faminto.
- Ó cabra no vento e na urze, mulher nua sob
as mãos, mulher de ventre escarlate onde o sal põe o espírito,
mulher de pés no branco, transportadora
da morte e da alegria.

Dai-me uma mulher tão nova como a resina
e o cheiro da terra.
Com uma flecha em meu flanco, cantarei.
E enquanto manar de minha carne uma videira de sangue,
cantarei seu sorriso ardendo,
suas mamas de pura substância,
a curva quente dos cabelos.
Beberei sua boca, para depois cantar a morte
e a alegria da morte.

Dai-me um torso dobrado pela música, um ligeiro
pescoço de planta,
onde uma chama comece a florir o espírito.
À tona da sua face se moverão as águas,
dentro da sua face estará a pedra da noite.
- Então cantarei a exaltante alegria da morte.

Nem sempre me incendeia o acordar das ervas e a estrela
despenhada de sua órbita viva.
- Porém, tu sempre me incendeias.
Esqueço o arbusto impregnado de silêncio diurno, a noite
imagem pungente
com seu deus esmagado e ascendido.
- Porém, não te esquecem meus corações de sal e de brandura.

Entontece meu hálito com a sombra,
tua boca penetra a minha voz como a espada
se perde no arco.
E quando gela a mãe em sua distãncia amarga, a lua
estiola, a paisagem regressa ao ventre, o tempo
se desfibra - invento para ti a música, a loucura,
e o mar.

Toco o peso da tua vida: a carne que fulge, o sorriso,
a inspiração.
E eu sei que cercaste os pensamentos com mesa e harpa.
Vou para ti com a beleza partida,
os ombros violados,
o sangue penetrado de paredes nuas.
Digo: eu sou a beleza, seu rosto e seu durar. Teus olhos
se transfiguram, tuas mãos descobrem
a sombra da minha face. Agarro tua cabeça
áspera e luminosa, e digo: ouves, meu amor?, eu sou
aquilo que se espera para as coisas, para o tempo -
eu sou a beleza.
Inteira, tua vida o deseja. Para mim se erguem
teus olhos de longe. Tu própria me duras em minha velada
beleza.

Então sento-me à tua mesa. Porque é de ti
que me vem o fogo.
Não há gesto ou verdade onde não dormissem
tua sombra e loucura,
não há vindima ou água
em que não estivesses pousando o silêncio criador.
Digo: olha, é o mar e a ilha dos mitos
originais.
Tu dás-me a tua mesa, descerras na vastidão da terra
a carne transcendente. E em ti
principiam o mar e o mundo.

Minha memória perde em sua espuma
o sinal e a vinha.
Plantas, bichos, águas cresceram como religião
sobre a vida - e eu nisso demorei
meu frágil instante. Porém,
teu silêncio de fogo e leite repõe a força
maternal, e tudo circula entre teu sopro
e teu amor. As coisas nascem de ti
como as luas nascem dos campos fecundos,
os instantes começam da tua oferenda
como as guitarras tiram seu início da música nocturna.

Mais inocente que as árvores, mais vasta
que a pedra e a morte,
a carne cresce em seu espírito cego e abstracto,
tinge a aurora pobre,
insiste de violência a imobilidade aquática.
E os astros quebram-se em luz sobre
as casas, a cidade arrebata-se,
os bichos erguem seus olhos dementes,
arde a madeira - para que tudo cante
por teu poder angélico e fechado.

Com minha face cheia de teu espanto e beleza,
eu sei quanto és o íntimo pudor
e a água inicial de outros sentidos.

Começa o tempo onde a mulher começa,
é sua carne que do minuto obscuro e morto
se devolve à luz.

Na morte referve o vinho, e a promessa tinge as pálpebras
com uma imagem.
Espero o tempo com a face espantada junto ao teu peito
de sal e de silêncio, concebo para minha serenidade
uma ideia de pedra e de brancura.
És tu que me aceitas em teu sorriso, que ouves,
que te alimentas de desejos puros.
E une-se ao vento o espírito, rarefaz-se a auréola,
a sombra canta baixo.

Começa o tempo onde a boca se desfaz na lua,
onde a beleza que transportas como um peso árduo
se quebra em glória junto ao meu flanco
martirizado e vivo.
- Para consagração da noite erguerei um violino,
beijarei tuas mãos fecundas, e à madrugada
darei minha voz confundida com a tua.
Oh teoria dos instintos, dom de inocência,
taça para beber junto à perturbada intimidade
em que me acolhes.

Começa o tempo na insuportável ternura
com que te adivinho, o tempo onde
a vária dor envolve o barro e a estrela, onde
o encanto liga a ave ao trevo. E em sua medida
ingénua e cara, o que pressente o coração
engasta seu contorno de lume ao longe.
Bom será o tempo, bom será o espírito,
boa será nossa carne presa e morosa.
- Começa o tempo onde se une a vida
à nossa gratidão.


... palavras de Herberto Helder


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sábado, 19 de novembro de 2016

Acusações





Ergueu-se enorme, vermelha de raiva, uma lua acusadora.
Encheu-se das promessas que incumprimos; inchou na solidão dos encontros a que faltámos.
Sobre esta minha praia e sobre aquela tua baía, ergueu-se, acusadora, a lua que traímos. 
Impõe-se, agora, alta e plena, ao negro profundo que é o espelho vazio do nosso desamor. 
Pendurada num resto de céu, denuncia ao mundo o nosso crime. 
E escurece-nos. 
A lua sempre enche de negro aqueles a quem, por mil e uma noites, iluminou. 


Trazido do fantástico galeão da Cuca, a pirata, que é o melhor sítio para se ver a lua (neste navio)

O Homem do Violino


























Quando há dias fui ver e ouvir jazz com um grupo francês que dá pelo nome de Les Kostards, deparei-me com este violinista que, para além de surpreender pela beleza do som que arrancava do seu violino, inundou a sala com uma simpatia e humor que guardo no canto da memória reservado às coisas boas. 
O artista é LAURENT ZELLER.
Não é que os seus companheiros não merecessem uma reportagem fotográfica, mas a minha câmara engraçou com o Laurent e foi ele que ficou neste registo do homem do violino. A sala escura e uma "Kodak" de bolso não permitiram registos de grande qualidade. Mas o que pretendi registar e deixar-vos aqui não é arte fotográfica. São apenas registos de momentos de um artista que, como podem ver, não podia deixar de ser fotografado


Já antes por aqui tinha deixado o Homem da Concertina
Hoje deixo o Homem do Violino.
Se quiserem deliciar-se com um pouco da música de "Les Kostards", podem ouvi-los na sua PÁGINA OFICIAL ou vê-los, por exemplo AQUI.


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domingo, 6 de novembro de 2016

Esta gente


Esta gente cujo rosto
Às vezes luminoso
E outras vezes tosco 


Ora me lembra escravos
Ora me lembra reis


Faz renascer meu gosto
De luta e de combate
Contra o abutre e a cobra
O porco e o milhafre 


Pois a gente que tem
O rosto desenhado
Por paciência e fome
É a gente em quem
Um país ocupado
Escreve o seu nome 


E em frente desta gente
Ignorada e pisada
Como a pedra do chão
E mais do que a pedra
Humilhada e calcada 


Meu canto se renova
E recomeço a busca
De um país liberto
De uma vida limpa
E de um tempo justo 



 Poema de Sophia de Mello Breyner Andresen, in "Geografia"



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segunda-feira, 26 de setembro de 2016

e encerrar-me todo num poema, não em língua plana mas em língua plena



queria fechar-se inteiro num poema
lavrado em língua ao mesmo tempo plana e plena
poema enfim onde coubessem os dez dedos
desde a roca ao fuso
para lá dentro ficar escrito direito e esquerdo
quero eu dizer: todo
vivo moribundo morto
a sombra dos elementos por cima

Herberto Helder, A Morte sem Mestre

sábado, 30 de julho de 2016

Iniciação ao surrealismo



Os anões saltam à corda
Na fossa das Marianas
Um tem nome de Taborda
Outro gosta de bananas

Ervilhas cozem depressa
Por entre vales e montes
Sopram comboios fantasmas
Pousados em cataplasmas
Tropeçam os mastodontes
Que inquietação essa...

Era a vaca que já não ria
A sardinha no lupanar
A roca parou de fiar
O papel não tem esquadria

BPinto, Inédito


terça-feira, 26 de julho de 2016

E a gente dança ...

E a gente canta
E a gente dança
E a gente não se cansa
De ser criança
Da gente brincar
Da nossa velha infância


Você é assim
Um sonho pra mim
E quando eu não te vejo

Eu penso em você
Desde o amanhecer
Até quando eu me deito

Eu gosto de você
E gosto de ficar com você
Meu riso é tão feliz contigo
O meu melhor amigo é o meu amor

E a gente canta
E a gente dança
E a gente não se cansa
De ser criança
Da gente brincar
Da nossa velha infância

Seus olhos, meu clarão
Me guiam dentro da escuridão
Seus pés me abrem o caminho
Eu sigo e nunca me sinto só

Você é assim
Um sonho pra mim
Quero te encher de beijos

Eu penso em você
Desde o amanhecer
Até quando eu me deito

Eu gosto de você
E gosto de ficar com você
Meu riso é tão feliz contigo
O meu melhor amigo é o meu amor

E a gente canta
A gente dança
A gente não se cansa

De ser criança
A gente brinca
A nossa velha infância

Seus olhos meu clarão
Me guiam dentro da escuridão
Seus pés me abrem o caminho
Eu sigo e nunca me sinto só

Você é assim
Um sonho pra mim
Você é assim

Você é assim
Um sonho pra mim
Você é assim



(Arnaldo Antunes / Carlinhos Brown / Dari Moraes / Marisa Monte)




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domingo, 24 de julho de 2016

... e semear um grão de poesia no teu seio ...


Também eu quero abrir-te e semear
Um grão de poesia no teu seio!
Anda tudo a lavrar,
Tudo a enterrar centeio,
E são horas de eu pôr a germinar
A semente dos versos que granjeio.

Na seara madura de amanhã
Sem fronteiras nem dono,
Há de existir a praga da milhã,
A volúpia do sono
Da papoula vermelha e temporã,
E o alegre abandono
De uma cigarra vã. 


Mas das asas que agite,
O poema que cante
Será graça e limite
Do pendão que levante
A fé que a tua força ressuscite!

Casou-nos Deus, o mito!
E cada imagem que me vem
É um gomo teu, ou um grito
Que eu apenas repito
Na melodia que o poema tem. 


Terra, minha aliada
Na criação!
Seja fecunda a vessada,
Seja à tona do chão,
Nada fecundas, nada,
Que eu não fermente também de inspiração!

E por isso te rasgo de magia
E te lanço nos braços a colheita
Que hás de parir depois...
Poesia desfeita,
Fruto maduro de nós dois. 


Terra, minha mulher!
Um amor é o aceno,
Outro a quentura que se quer
Dentro dum corpo nu, moreno!

A charrua das leivas não concebe
Uma bolota que não dê carvalhos;
A minha, planta orvalhos...
Água que a manhã bebe
No pudor dos atalhos. 


Terra, minha canção!
Ode de pólo a pólo erguida
Pela beleza que não sabe a pão
Mas ao gosto da vida!



“A terra” de Miguel Torga  


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sábado, 23 de julho de 2016

De volta ao luto ...





… e para acompanhar …

He left no time to regret
Kept his lips wet
With his same old safe bet
Me and my head high
And my tears dry
Get on without my guy
You went back to what you knew
So far removed from all that we went through
And I tread a troubled track
My odds are stacked
I'll go back to black

We only said goodbye with words
I died a hundred times
You go back to her
And I go back to
I go back to us

I love you much
It's not enough
You love blow, and I love puff
And life is like a pipe
And I'm a tiny penny rolling up the walls inside

We only said goodbye with words
I died a hundred times
You go back to her
And I go back to
We only said goodbye with words
I died a hundred times
You go back to her
And I go back to

Black
Black
Black
Black
Black
Black
Black
I go back to
I go back to

We only said goodbye with words
I died a hundred times
You go back to her
And I go back to
We only said goodbye with words
I died a hundred times
You go back to her
And I go back to black


Na versão cantada, o que o rapaz que “não teve tempo para se arrepender” manteve molhado não foram bem os lábios. Tudo o mais é uma delícia de canção, muito mais nesta versão acústica que na que ficou registada (que, querendo, podem escutar AQUI, embora censurada na parte húmida do rapaz!).

Autores: Amy Winehouse e Mark Ronson


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sexta-feira, 22 de julho de 2016

Geometria que respira errante e ritmada ...


Consideremos o jardim, mundo de pequenas coisas,
calhaus, pétalas, folhas, dedos, línguas, sementes.
Sequências de convergências e divergências,
ordem e dispersões, transparência de estruturas,
pausas de areia e de água, fábulas minúsculas.


Geometria que respira errante e ritmada,
varandas verdes, direções de primavera,
ramos em que se regressa ao espaço azul,
curvas vagarosas, pulsações de uma ordem
composta pelo vento em sinuosas palmas. 


Um murmúrio de omissões, um cântico do ócio.
Eu vou contigo, voz silenciosa, voz serena.
Sou uma pequena folha na felicidade do ar.
Durmo desperto, sigo estes meandros volúveis.
É aqui, é aqui que se renova a luz.



Poema “O Jardim” de António Ramos Rosa, in "Volante Verde"

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quarta-feira, 20 de julho de 2016

Ocasos


(Neste blogue gostamos da Cuca)




Lembrei-me, hoje, do teu pôr-do-sol. 
Ficava numa longa reta asfaltada que terminava no mar.
Os raios cansados salpicavam de ouro partículas de pó na berma da estrada que, a cada ocaso, era uma pista de descolagem para a eternidade. 

Todas as pessoas tinham o seu pôr-do-sol. Há alguma nostalgia no facto de saber que não voltarei a cruzar-me com tão bizarro sentido de propriedade. 

O meu sol punha-se a dois ou três quilómetros do teu spot de ocasos. 
Afogava-se diretamente no azul do mar, parecendo mergulhar a partir da minha varanda. 
Ainda é assim que se põe o meu sol. As varandas sobre o mar são iguais em qualquer parte do mundo. 
Ocorreu-me hoje que, apesar do tanto que partilhámos, raras foram as vezes em que conseguimos viver o mesmo ocaso.


Roubado, em plágio mais-que-perfeito, à Cuca, a Pirata, aqui.