Éramos para ser muito felizes numa daquelas casas de madeira
pintadas de branco, com um terraço voltado para o mar, a terminar nos limites
da areia da praia.
Dentro de casa ia ser tudo branco à exceção das capas dos
livros que me lerias nas manhãs em que nos acordassem os uivos do vento norte.
Então ficaria deitada com a cabeça no teu colo e os sentidos alugados a um
poema de Wallace ou, havendo sol, a um verso de um qualquer árabe do século XII
que por mero acaso tivéssemos desenterrado na véspera.
Éramos para almoçar em silêncio, na varanda, lado a lado e
com os olhos presos no mar, um peixe pescado e assado por ti. Estaria vento mas
não nos perturbaríamos com os objetos a fugirem da mesa e a dançarem numa
espiral em nosso redor. Nem uma onda morreria antes que a guardássemos na
retina.
Éramos para dançar ao por-do-sol na praia vazia perante uma
plateia de gaivotas alinhadas em esquadria e à espera do crepúsculo.
À noite, centenas de velas iluminariam a banheira vintage,
branca, onde me lavarias os cabelos ao som do jazz da Billie Holiday.
E haveria, por fim, de adormecer como acordei, com a tua
voz, por entre os uivos do vento norte, a alimentar-me a alma com a metafísica
esdrúxula de uma criatura ainda mais perturbada do que nós dois.
Éramos para ser pastores de gaivotas.
Mas depois pensámos melhor e achámos que era mais fácil
continuarmos a ser o que não somos.
Texto de "Cuca, a Pirata", em “Stars & Mythical Creatures”
(AQUI)
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